Opinião

Descontentamento e direita radical populista – o fim do excepcionalismo português

Como é sabido, os resultados das eleições legislativas do passado dia 10 de março provocaram uma espécie de terramoto social e político em Portugal. A eleição de 50 deputados por parte do Chega, força política que se insere naquilo que designamos como direita radical populista, tem gerado desde esse dia uma produção torrencial de opiniões na imprensa escrita sobre as causas, mais remotas e estruturais, por um lado, mais imediatas e circunstanciais, por outro, e sobre as consequências potenciais da mudança verificada na paisagem política portuguesa, sobretudo no que diz respeito à composição da Assembleia da República – num contexto em que a esquerda teve um dos resultados mais fracos da sua história – e às soluções de governo. No Barreiro, o Chega passou de 4.ª força política para 2.ª, subindo quase 10 pontos percentuais, passando de 5 692 votos (7,42%) para 7 951 votos (17,25%).

Aquilo que está a acontecer hoje em Portugal insere-se numa “onda” de ascensão e reforço do peso político da direita radical populista que, nalguns casos com estratégias concertadas, tem varrido a Europa, e não só (pensemos num Donald Trump ou num Jair Bolsonaro), ao longo das últimas décadas e que agora chega a Portugal. Durante algum tempo ainda se pensou, com alguma ingenuidade parece-nos agora, que Portugal pudesse permanecer imune ou passar ao lado deste fenómeno ou que ele pudesse ser contido com “cercas sanitárias”. No entanto, ele aí está. Como escreveu Dulce Maria Cardoso num premonitório artigo intitulado “Um brinquedo frágil em mãos brutas”, publicado no El País no dia 7 de março: «Afinal, o monstro estava apenas adormecido. Nem podia ser de outra maneira. O monstro nunca morre».

De facto, o crescimento rápido da direita radical populista revela que as ideias que em seu redor se aglutinam já estavam presentes na sociedade portuguesa mas, de alguma forma, silenciadas ou ocultas debaixo de uma fina camada de verniz de censura social que agora estalou. Aquilo que dantes era silenciado é hoje dito em público com naturalidade e convicção. Talvez devêssemos ter prestado mais atenção quando, em 2007, António Oliveira Salazar foi eleito “o maior português de sempre”, com 41% dos votos, no concurso Grandes Portugueses. A memória – sempre ela – reemerge como campo de batalha e disputa pela construção do futuro. Um dado tão mais relevante quando sabemos que o eleitorado abaixo dos 30 anos de idade votou de forma expressiva no Chega.

Mas nem tudo são representações e subjetividades. Ao longo de vários anos, sucessivos governos não têm demonstrado nem capacidade nem vontade política para resolver os problemas económicos e sociais do país. As soluções apresentadas pelo “bloco central”, aliás, apresentam diferenças de pormenor e uma notável continuidade na substância e propensão neoliberal, isto é, na fidelidade à austeridade que, como recentemente escreveu Viriato Soromenho-Marques, «é o preço permanente que o país paga pelo modo como capitulou, desde o Tratado de Maastrich (1993), perante uma União Económica e Monetária imperfeita, injusta e desigual».

Olhando para Portugal, é também de economia que estamos a falar quando dizemos que uma fatia significativa do financiamento da direita radical populista é proveniente das famílias Mello, Champalimaud e outros grandes e poderosos grupos económicos, muitos dos quais, ainda não eram conhecidos os resultados finais das eleições, já clamavam por estabilidade. Ou quando afirmamos que Portugal continua a ser um país de baixos salários, onde a precariedade laboral cresce e a monocultura do turismo campeia; o acesso à habitação digna para os mais jovens, sobretudo nas áreas metropolitanas, é uma miragem; a erosão dos serviços públicos fundamentais é evidente (destacando-se os maus-tratos a que o SNS e a Escola pública têm sido sujeitos) e a asfixia das “contas certas”, dogma absoluto do “extremo-centro”, impediu os portugueses de respirar; que o fosso entre ricos e pobres aumenta; que são aos milhares os jovens que são “forçados” a emigrar e que tudo isto acontece num ambiente de enorme promiscuidade e subordinação da política aos interesses económicos, de manipulação da opinião pública e de corrupção, nepotismo e tráfico de influências generalizados. É a meritocracia do apelido ou do cartão de militante no partido certo, a democracia das cativações encapotadas e das vidas adiadas. Não é difícil perceber porque crescem a frustração e a zanga, o ressentimento e o ódio, e se instalam a desesperança, a incerteza e o medo relativamente ao futuro.

À esquerda, movimentos sociais, sindicatos e partidos têm também uma reflexão a fazer e não podem enfiar a cabeça na areia. Não se podem continuar a adoptar as receitas do passado esperando que o resultado seja diferente. Como escreveu Eugénio Rosa, «há que pensar como furar este estrangulamento criado pela maioria da comunicação social, e não ficar passivo, e muito menos acusar os portugueses por votarem mal». É preciso ir à conversa e ao diálogo, consequente e com objetivos, olhos nos olhos, mas também nas redes sociais e onde for preciso, preservando as diferenças, mas procurando ser mais do que a soma das partes naquilo que verdadeiramente importa para melhorar a vida da gente comum. Este é um dos desafios que enfrentamos hoje. Recuperar a iniciativa política, reconquistar as ruas e liderar o protesto será outro.

Porque é que não foi a esquerda a capitalizar uma parte mais significativa do voto anti-sistema e do protesto? Porque é que os seus contributos para o progresso social (pensemos nas creches gratuitas, no passe metropolitano e no combate aos “falsos” contratos de associação, por exemplo) não foram reconhecidos como consequência direta da sua intervenção? Porque é que a “geringonça”, solução política acarinhada por tantos portugueses, pode ser hoje demonizada por tantos outros? Porque é que quando se pergunta “quanto é que isso custa” (exemplo maior da hegemonia neoliberal do pensamento contemporâneo), é-se incapaz de responder com assertividade, de forma simples e clara? De uma forma que, sendo honesta e verdadeira, consiga concorrer com a velocidade galopante da mentira, da histeria e da desinformação prevalecentes.

Como é que, em suma, podemos resgatar para a esfera progressista os milhares de cidadãos que, sentindo-se encurralados entre um “bloco central” de todos os interesses, que faz hoje o que ontem jurou a pés juntos que nunca iria fazer, e uma esquerda que parece hoje incapaz de os seduzir devolvendo-lhes confiança num futuro melhor, escolheram, com toda a legitimidade que a democracia de baixa intensidade em que habitamos lhes confere, votar em forças políticas que constituem a vanguarda do retrocesso social?

Sem transformar simples o que é complexo, nem sacrificar o rigor e objetividade, isto é, a busca incessante da verdade, ao sentimento de urgência democrática que partilhamos, estes são alguns dos desafios em torno dos quais as forças vivas da democracia têm de se unir. Até porque, como diria o poeta Manuel António Pina, «Ainda não é o fim / nem o princípio do mundo / calma / é apenas um pouco tarde».

André Carmo
Geógrafo e professor universitário
(Artigo elaborado a partir da intervenção de abertura do debate “Descontentamento e direita radical populista – o fim do excepcionalismo português”, realizado no dia 27 de março de 2024, na Cooperativa Cultural Popular Barreirense)


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