Opinião

Advocacia Tradicional – mudança de paradigma ou extinção?

Uma crónica de Isabel de Almeida.

No próximo dia 19 de Maio celebra-se em Portugal o Dia do Advogado, por se tratar de data alusiva a São Ivo, o Santo Patrono dos Advogados, jurista e religioso nascido no Ducado da Bretanha a 17 de Outubro de 1253, oriundo de uma família da nobreza rural viria a seguir estudos superiores e foi aluno de São Tomás de Aquino (um dos mais célebres Doutores da Igreja da época medieval). Reconhecido como humilde dedicou a sua vida ao Direito e à protecção dos mais desfavorecidos, tendo exercido funções como juíz e também como advogado, distinguiu-se pela sua preocupação e empenho na defesa dos mais pobres. São Ivo é ainda hoje celebrado por simbolizar a essência da advocacia tal como é, ou deveria ser, entendida tradicionalmente, zelando pela justiça, pela dignidade do ser humano (para cuja vivência em sociedade de forma regulada foram concebidas as normas Jurídicas), o seu legado ficou indelevelmente gravado na história do Direito e da Advocacia por se ter afirmado pela sua humildade e pelo zelo e empenho com que se entregava à defesa das suas causas.

Embora a imagem pública, mormente os estereótipos negativos que circulam na opinião pública (e em Portugal é muito comum) ande muito arredada daquela que é a visão tradicional da advocacia, profissão com consagração Constitucional no nosso país e cuja missão é auxiliar na prossecução da justiça, cabendo a cada advogado assumir-se enquanto servidor da justiça e do direito zelando pela defesa dos Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos, no nosso quotidiano assistimos a convivências nem sempre fáceis entre os advogados e as demais profissões forenses, e chegam até ao nosso conhecimento cumplicidades nem sempre muito transparentes entre a justiça e os meios de comunicação social que muitas vezes trazem consigo a semente da criação de uma má imagem pública da advocacia que acaba por, inadvertidamente, afectar a imagem de toda a profissão globalmente considerada.

Mas em mais um ano de balanço, e aproximando-se o Dia do Advogado é com alguma inquietação que assisto, após o decurso do primeiro ano de pandemia, a vários indícios de que urge pensar abertamente numa mudança de paradigma da advocacia, pois os novos desafios constantes, em termos de concorrência e da tendência crescente para a abertura do mercado à prática de actos que embora protegidos pela lei dos actos próprios dos advogados e dos Solicitadores (de 2004) começam a ser cada vez mais encarados com naturalidade e impunidade como potencialmente praticáveis por vários agentes (um dos grandes exemplos é a cobrança de créditos onde assistimos a um sem número de atropelos e procedimentos pouco claros e transparentes onde por vezes actuam funcionários de empresas especializadas que podem nem ser juristas, e muito menos alguns deles serão advogados mas que invadem esta função própria dos advogados). É relativamente banal assistirmos à tomada de assalto dos actos próprios dos advogados por agências de documentação, por mediadores imobiliários, por curiosos que começam a pouco e pouco (em circuitos mais ou menos fechados) a oferecer os seus serviços de procuradoria ilícita (crime cometido por quem exerce funções atinentes a actos próprios da advocacia sem ser advogado) e que facilmente adquirem uma alargada carteira de clientes simplesmente porque, ainda que seja manifesta a ilegalidade e a impreparação técnico-jurídica é vox populi que “sempre sai mais barato do que ir meter-se num advogado!”

É uma profissão ritualizada, fala uma língua própria (a linguagem jurídica é altamente especializada e não raras vezes de difícil compreensão para quem seja de fora da área), cumpre umas normas estranhas (aos olhos de quem as não sabe nem sente) vive num mundo isolado do cidadão comum que costuma também pensar que os advogados se acham seres superiores. O acesso à profissão é exigente (e também aqui o futuro caminha no sentido de vir a ser repensado e quiçá legislativamente o formato de acesso à profissão que poderá a médio/longo prazo aproximar-se de uma liberalização crescente em termos de acesso) e não se pode dizer que seja propriamente acessível em termos de custos, em especial no momento de crise económica que agora atravessamos.

E que garantias e protecções têm os advogados? Têm um sistema privado de previdência que foi pensado para um determinado status quo que se mostra profundamente alterado nos mais recentes anos, e actualmente está na ordem do dia a hipótese de vir a ser possível optar entre este sistema privado (cujas quotizações não são propriamente acessíveis em termos financeiros, e que não confere por exemplo a hipótese de ter algo tão simples como “baixa por doença”) e o regime geral da Segurança Social, sendo esta uma das questões mais polémicas da advocacia nacional que, até há relativamente pouco tempo, antes de surgirem movimentos públicos de contestação com manifestações de rua, petições na Assembleia da República, reuniões com grupos parlamentares, era um tema absolutamente tabu.

Em pandemia o total abandono e a carência de apoios a que estão votados os advogados tem ficado bastante evidente, não há baixa mesmo para quem fique infectado com Covid-19, a justificação de atrasos na prática de actos sujeitos a prazos fica nas mãos dos magistrados e, até , do parecer do Colega da contraparte. Há decisões judiciais e requerimentos de outros advogados a questionar se a pessoa infectada esteve de facto incapacitada para trabalhar, e só este simples detalhe diz muito sobre como vai o respeito – ou a falta dele – nos meios judiciais, e diz-nos que existem cidadãos de primeira e cidadãos de segunda e que os advogados estão bem longe de serem a classe privilegiada a que muitos apontam o dedo crítico e até ofensivo!

E entre colegas? Maioritariamente, e salvo honrosas excepções que ainda existem, não são os advogados uma classe unida. Os valores tradicionais, as praxes da profissão estão a perder-se, e não tanto entre os mais jovens que até as estudam durante o estágio, mas tendem a ser esquecidos estes valores na continuidade da prática pela vida fora. Costumo afirmar, meio a sério meio a brincar (ou a rir para não chorar… quem sabe!) que os advogados nem precisam de inimigos vindos de fora, são óptimos a dar tiros nos próprios pés, e são exímios, tantas vezes, a não saberem respeitar-se entre si, e devo dizer que a pandemia veio acentuar este clima de “vale tudo” entre muitos membros desta classe profissional que por definição é (ou deveria ser) sempre nobre! Não encontro grandes motivos para celebrações, ou o paradigma muda respeitando a essência dos valores deontológicos, ou quiçá espera-nos a crónica de uma morte anunciada!


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