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Para além do acórdão Sócrates

Não vou versar sobre as três horas de leitura do acórdão do processo Operação Marquês. Ou das virtudes e defeitos do “Ticão”. Ou das características do “Super Juiz” Carlos Alexandre ou do “Campeão dos recursos perdidos”, com o Tribunal da Relação, Ivo Rosa.

Não vou dizer se fiquei indignado ou resignado com as decisões proferidas, ou da bondade ou infelicidade das mesmas.

Prefiro focar-me nas realidades que ficaram evidenciadas, até agora, com este processo:

  1. Como é possível, em pleno Séc. XXI, existirem dúvidas de interpretação sobre timings de prescrição de crimes?
  2. Como é possível haver interpretações distintas sobre se dinheiro obtido ilicitamente, e que por isso não foi alvo dos devidos impostos, deve ou não ser considerado como fraude fiscal?
  3. Como é possível Portugal não ter ainda aprovado a criminalização do enriquecimento ilícito?
  4. Quando se vão adoptar medidas, eficazes e eficientes, contra a corrupção?
  5. Como se quer fazer real justiça quando existem julgamentos que se prolongam por anos a fio?

Eu não apoio a 4ª República, proclamada por alguns, mas percebo a angústia e a revolta da maioria dos cidadãos portugueses, perante os sistemas, politico e de justiça, que se têm de reformar urgentemente.

Eu identifico-me politicamente com o PPD de Sá Carneiro, mas não é por isso que não deixo de ficar chocado ao verificar que o Ministério Público (MP) que considerou, utilizando a interpretação que Ivo Rosa agora utilizou para o caso “Sócrates”, prescritos os crimes no caso “submarinos”, que teve todos os intervenientes do lado alemão condenados, seja o mesmo MP que agora utilizou a interpretação contrária para considerar os crimes da Operação Marquês não prescritos. Isto não faz sentido nenhum a ninguém e não dignifica a justiça portuguesa.

A relação entre a política e a economia, com a flutuação frequente de políticos pelas grandes empresas públicas e privadas, permite práticas que não são as mais correctas e que não beneficiam em nada o combate à corrupção. As flutuações constantes de advogados entre o sistema político e os gabinetes de advocacia em nada beneficiam a dignificação do sistema político e do sistema de justiça. A flutuação de pessoas entre as bancadas parlamentares e os diversos tribunais, em nada beneficiam a necessidade de separação dos dois poderes e, consequentemente, em nada beneficiam a dignificação dos mesmos.

As leis são aprovadas na Assembleia da República. Quem as aprova são os deputados. Os mesmos derivam dos partidos políticos que se apresentam a eleições. Nos últimos 42 anos de democracia temos 20 anos de governação PSD e 22 anos de governação PS. Por estes dois partidos passaram todas as iniciativas legislativas, todas as reformas do sistema penal, todas as reformas do sistema político, etc. E ainda estamos tão atrasados a estes níveis. E com esta constatação eu não advogo que a solução não deva passar por estes partidos políticos, eu apenas quero reforçar o dever moral e ético que têm, sobretudo estes dois partidos, de resolver, de vez, o que foram incapazes de resolver nas últimas quatro décadas.

Quando se apela a reformas profundas e urgentes do sistema politico e de justiça, o que se quer é dar força aos pilares fundamentais da democracia e dos estados de direito. Têm de existir regras concretas e instrumentos eficazes que condicionem a actuação de que têm o poder e sobretudo instrumentos que não deixem impunes aqueles que prevaricam.

Existe um fortíssimo sentimento, na sociedade, que o poder, seja ele qual for, está envolto numa nevoa constante e que quem prevarica não é punido. Palavras como transparência, combate à corrupção e criminalização dos comportamentos ilícitos, têm de se ver plasmadas em reformas que já pecam por tardias, faz dezenas de anos.

Se não queremos ver proliferar movimentos e partidos “radicais”, o “regime” tem de dar um claro sinal à sociedade que se consegue reformar, que consegue melhorar, que se consegue autocriticar e corrigir. E isto só será possível com um pacto de regime a sério.

As forças politicas têm de fazer uma profunda reflexão sobre o caminho percorrido e os erros cometidos. Não podem continuar a colocar obstáculos constantes a estas reformas que são por todos exigidas.

Se o “regime”, ou “sistema”, não seguir este caminho de forma urgente, temo que, em breve, a insatisfação do povo português seja tão grande, que passará um cheque em branco a qualquer um que lhe prometa realizar as tão esperadas reformas. E temo que esse cheque, dado em situação de “desespero”, de quem não vislumbra qualquer vontade de mudança, possa trazer uma nova discussão, que em vez de ser sobre a corrupção “destes”, seja sobre a corrupção “daqueles”. E o povo português não merece andar sempre a cantar o mesmo “fado” ou ter sempre a mesma “sina”.

Quando se volta a ter a confirmação que 10% dos portugueses, que têm um emprego estável, continuam a engrossar a faixa de pobreza existente, que normalmente é associada ao desemprego e a alguns reformados, e que o volume de “negócios ilícitos” anual pode rondar os 20 mil milhões de euros, temos de nos deixar de “politiquices de algibeira” e fazer um pacto global, que promova as alterações necessárias e que se centre a politica na sustentabilidade e prosperidade económica dos cidadãos promovendo, de vez, o bem-estar comum e a qualidade de vida.

O caso Sócrates terá os próximos episódios no Tribunal da Relação e no julgamento que desejamos célere. A justiça que julgue e que decida.

Portugal e os portugueses têm o seu futuro nas mãos de que tem o poder de legislar, de reformar, de melhorar e de evoluir. Que estejam à altura dos desafios que estes tempos exigem. Se nada continuarem a fazer, alguém o fará por eles.


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comentário

  1. Ora aqui está um artigo bastante lúcido e assertivo.
    Que por sinal complementa o meu. Pois vem alertar sobretudo para as consequências que a má justiça pode trazer ao país.