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Nuno Mantas | “Aprendemos melhor quando interagimos com pessoas que têm níveis de aprendizagem semelhantes aos nossos”

Nuno Mantas, diretor do Agrupamento de Escolas da Boa Água, numa viagem por uma das escolas básicas mais inovadoras do país. Leia já a primeira parte da entrevista.

O Agrupamento de Escolas da Boa Água alcançou a classificação de Excelente em todos os domínios avaliados pela Inspeção-Geral da Educação e Ciência, um marco único que refletiu o sucesso de técnicas pedagógicas pioneiras em Portugal e não só.

O diretor do agrupamento, Nuno Mantas, fã da mudança e do pensamento crítico, foi o maior responsável pela distinção do agrupamento, nomeadamente da Escola Básica Nº1 da Boa Água.

Como é que chegou à escola da Boa Água?

Cheguei em 2009, quando a escola foi inaugurada. Antes disso, fui diretor da Navegador Rodrigo Soromenho, em Sesimbra, por seis anos. Depois de o Ministério da Educação ter criado esta nova escola, pediram-me para ser eu a instalá-la, já que poucos se lembravam de como fazer uma coisa dessas.

Portanto, já tinha essa experiência. Fazíamos muitas coisas diferentes na Navegador Rodrigo Soromenho, e por isso pediram-me para instalar esta escola. O objetivo inicial era replicar o modelo anterior, mas surgiram novas oportunidades e desafios , que elevaram o patamar da escola. Trabalhamos muito com parceiros externos, como a Fundação PT, agora Altice, e com editoras no desenvolvimento de projetos.

Na EB1 Boa Água os alunos aprendem com colegas de anos a cima, de forma autónoma e com recurso a ferramentas digitais.

Um desses projetos foi o Edulabs. Testamos um laboratório de aprendizagem digital com tablets em turmas piloto, de 2014 a 2017. Aprendemos muito, especialmente sobre pedagogias diferentes. Um grupo de alunos do 7º ao 9º ano obteve os melhores resultados, desenvolvendo competências superiores ao trabalharem em projetos de grupo.

Em 2018-2019, o Ministério da Educação, através do secretário Pedro Cunha, lançou um projeto de inovação pedagógica, convidando seis escolas que ficaram com 100% de autonomia para desenvovler esse projeto. Pudemos implementar medidas importantes, algumas mesmo quase “fora da lei”, o que resultou em mudanças inovadoras ainda em prática hoje.

Qual a principal ideologia que rege a implementação destes projetos?

Não sei se está muito relacionado com ideologia. Eu falo mais de um modelo pedagógico. Normalmente, nas escolas, vemos o modelo de instrução tradicional, com o professor a ensinar para o grupo de alunos. Existem também escolas com um modelo centrado no aluno, onde a aprendizagem é construída com base nas necessidades do aluno desde cedo.

Há um terceiro modelo, que é o de interação e comunicação, onde se aprende através dessas interações. Quanto mais interação e comunicação entre os participantes, mais fácil é a aprendizagem. Esse é o modelo mais parecido com o nosso, mas não o copiámos de ninguém. Temos, por exemplo, tutorias inspiradas na Escola da Ponta, que já usava esse modelo há 40 anos. Também temos 10 horas semanais de projetos, com um modelo semelhante ao dos jesuítas de Barcelona, onde os alunos desenvolvem projetos a partir das aprendizagens essenciais, trabalhando com vários professores.

Há um terceiro modelo, que é o de interação e comunicação, onde se aprende através dessas interações.

Além disso, temos o trabalho em pequenos grupos, que é um modelo inventado por nós. Embora existam outros modelos de comunidades de aprendizagem que envolvem voluntários, no nosso caso os grupos são fixos e trabalham juntos durante as restantes 15 horas semanais, como vimos no projeto Edulabs.

Porquê que é melhor trabalhar em grupos fixos?

Os grupos fixos ajudam os alunos a aprender a trabalhar em equipa. Uma coisa é um grupo que trabalha esporadicamente, outra é uma equipa. Numa equipa, por exemplo, alguém pode ser bom em apresentações, enquanto outro é excelente na recolha e seleção de informações, e outro é líder na organização. Essas competências diferentes funcionam como em qualquer organização, onde especialistas em diversas áreas se complementam, e a organização é mais eficaz.

Para quem não conhece a metodologia, pode pensar que em trabalhos de grupo apenas uma pessoa assume o comando enquanto os outros ficam de fora. Isso acontece no modelo de instrução tradicional, onde ninguém aprende a trabalhar em grupo. Nessas situações, cada pessoa faz uma parte do trabalho e depois junta tudo, mas isso não é colaborativo. O objetivo é que o resultado final seja maior que a soma das partes, o que requer colaboração real.

Esse processo leva tempo e não acontece da noite para o dia. Foi algo que aprendemos ao longo da implementação do nosso sistema, especialmente nos ciclos iniciais. No primeiro ciclo, os alunos ainda não estão habituados ao modelo cooperativo, então é mais difícil. Demorou cerca de um ano e meio para transformar uma turma do 7º ano do modelo tradicional para o modelo cooperativo.

E as escolas provavelmente não têm muita disponibilidade para experimentar com novos métodos…

As escolas geralmente não têm tempo para fazer essa mudança. Com os professores, o que acontece é que dizem que vão trabalhar em grupo, mas acabam a fazê-lo apenas por um ou dois trabalhos, pois a mudança é difícil e leva tempo. É preciso entender por que estamos a fazer isto e dar tempo para que o processo se consolide.

Quando generalizámos o modelo em 2019-2020, estendendo-o até ao 9º ano, a escola inteira estava a trabalhar em grupo. Era uma verdadeira confusão, com gritaria nas salas, toda a gente a tentar tentar falar mais alto que os outros. Eu mal conseguia pensar com o barulho.

Com o tempo, as coisas foram acalmando, e o modelo foi sendo interiorizado. Hoje, os alunos controlam melhor o sistema, e o trabalho em grupo acontece de forma mais organizada. Agora, eu posso estar à porta sem precisar abrir para saber que estão lá dentro, trabalhando em silêncio ou conversando de maneira natural e controlada dentro dos grupos.

Porém, adaptar-se a este sistema é difícil, especialmente para professores com 20 ou 30 anos de experiência em outro modelo.

Para além desse compromisso com o tempo, o que explica a capacidade do Agrupamento da Boa Água em implementar estes projetos desafiadores e diferentes?

Se tiverem 2 ou 3 dias, podemos abordar todas as razões. Quanto aos professores, houve casos de alguns que não se identificaram com o modelo. Em Portugal, os diretores não escolhem os professores; são os professores que escolhem as escolas, geralmente pela proximidade de casa. E no início, muitos professores vinham para a escola por essa razão, mas hoje já temos pessoas que vêm porque conhecem o projeto e a nossa metodologia, o que é ótimo.

Pavilhão desportivo EB1 Boa Água
Escola tem 10 equipas de handebol federadas, principalmente femininas, com alguns atletas na seleção nacional.

Porém, adaptar-se a este sistema é difícil, especialmente para professores com 20 ou 30 anos de experiência em outro modelo. O que acontece é que, ao final do ano, ou eles adaptam-se e se sentem prontos para o próximo ano, ou, se não gostarem do sistema, acabam mudando de escola. Isso acontece com uma minoria, mas quem não gosta, realmente não gosta. A maioria, no entanto, acaba por se adaptar e prefere trabalhar desta forma, apesar de dar mais trabalho e ter um nível de exigência diferente.

O papel do professor aqui é de orientador da aprendizagem. Ele coloca os desafios, faz as perguntas, e dá ‘feedback’.

A questão não é apenas maior participação dos professores, mas que todos os anos há algo novo a ser feito. No sistema tradicional, muitos professores repetem a mesma experiência ano após ano. O currículo, os livros, e até os testes mudam pouco. Aqui, é diferente. Os professores têm que pensar em projetos novos com os alunos, o que é mais desafiador.

Por exemplo, em vez de ensinar História de forma cronológica, os alunos podem trabalhar em projetos de décadas específicas do século XX. Isso exige mais do professor, pois cada grupo pode estar a estudar uma década diferente, e o professor tem de orientar todos esses trabalhos.

O papel do professor aqui é de orientador da aprendizagem. Ele coloca os desafios, faz as perguntas, e dá ‘feedback’. Isso permite um conhecimento mais profundo dos alunos e uma avaliação diferente. Muitos professores preferem esse modelo, mas alguns preferem o método tradicional, com planeamento e testes padronizados.

Infelizmente, não podemos selecionar professores diretamente porque os sindicatos acreditam que todas as escolas são iguais, e qualquer tentativa de escolha seria vista como favorecimento.

Como surgiu a ideia de integrar alunos de anos diferentes na mesma sala e quando é que essa abordagem foi implementada?

Sim, em 2017-18, quando começámos, implementámos isso logo desde o início. O motivo vem dos estudos do psicólogo russo Lev Vygotsky, dos anos 60, que descobriu que aprendemos melhor quando interagimos com pessoas que têm níveis de aprendizagem semelhantes aos nossos. Ele chamou isso de “zona proximal de desenvolvimento”. Aprender com alguém que está muito distante do nosso nível de conhecimento, como um mestre, é mais difícil, pois as diferenças de linguagem e compreensão são grandes.

Essa troca de conhecimento entre os colegas é uma forma poderosa de aprendizagem, pois quem ensina reforça os próprios conhecimentos.

Nós utilizamos essa teoria para promover a diversidade de aprendizagens dentro dos grupos. Forçamos a heterogeneidade, o que significa que os alunos têm diferentes níveis de conhecimento e trabalham juntos para se ajudarem. Além de promover a aprendizagem entre os alunos, isso ajuda a desmontar a ideia de que as aprendizagens devem ser organizadas por ano. Muitos professores ainda seguem a lógica de “neste ano ensino isto, no próximo ano aquilo”.

Aqui, o professor começa com uma introdução e oferece um guião de trabalho, que contém questões ou problemas para os alunos resolverem. Para isso, eles têm de ir procurar as respostas por conta própria, seja em livros, na internet, no YouTube, ou na biblioteca. Essa busca ativa permite que eles desenvolvam as suas próprias aprendizagens.

A interação entre os alunos ocorre naturalmente quando um, por exemplo, do sexto ano, já aprendeu algo no quinto ano e pode ajudar um colega que está a enfrentar essa dificuldade. Essa troca de conhecimento entre os colegas é uma forma poderosa de aprendizagem, pois quem ensina reforça os próprios conhecimentos. Além disso, a linguagem entre os colegas é mais próxima e, portanto, mais compreensível do que a do professor.

Claro, o professor está sempre disponível como um recurso de ajuda, mas a ideia é que os alunos aprendam essencialmente através das interações e da pesquisa própria, uma habilidade que será útil ao longo da vida.

Hoje em dia, se alguém quiser aprender algo, como trocar um pneu, vai procurar tutoriais na internet. Antigamente, íamos à biblioteca e confiávamos no que estava na enciclopédia. Agora, com a tecnologia, temos uma enorme vantagem em poder verificar e explorar diferentes fontes de informação para aprender de forma mais autónoma.

De que outras formas aplicação essa aprendizagem autónoma, sem induzir as crianças em erro?

Um exemplo clássico é quando os alunos encontram fontes de informação incorretas, como um site que afirma que a Terra é plana, mas que visualmente parece confiável. Os alunos precisam de aprender a validar essas informações, e a escola tem um papel fundamental nesse processo. Isso é crucial para o futuro, pois, sem essa capacidade de análise crítica, arriscamos formar pessoas desinformadas e suscetíveis a problemas como fraudes online e desinformação.

A educação moderna deve preparar os alunos para estes desafios, algo que não se consegue com o modelo tradicional de instrução. Além disso, o sistema precisa de ser inclusivo, integrando alunos com diferentes necessidades, inclusive alunos com deficiências físicas ou cognitivas. Em países como a Finlândia, por exemplo, muitos alunos com necessidades especiais estão em escolas separadas, mas em Portugal, a ideia é incluí-los no ambiente escolar regular. Esta inclusão, no entanto, vem com desafios, principalmente quando as escolas têm recursos limitados.

Os Centros de Recursos para a Inclusão (CRI) trazem técnicos como psicólogos e terapeutas para apoiar esses alunos, mas o financiamento para esses serviços tem sido insuficiente. O número de alunos que necessitam de apoio aumentou, mas os recursos permanecem os mesmos, o que compromete a qualidade do atendimento. Muitas escolas enfrentam o problema de ter turmas que excedem o número de alunos permitido por lei, especialmente quando se trata de alunos com necessidades educativas especiais. Isso torna o sistema insustentável, com turmas sobrecarregadas e sem professores e técnicos especializados suficientes para oferecer o apoio necessário.

Este modelo inclusivo exige um equilíbrio delicado, e o sistema ainda luta para atender a todas as necessidades com a qualidade desejada.

Considerando a sua experiência, o que assegura um jovem saudável física e psicologicamente? (segunda parte a baixo)


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