José Carlos Soares: “Andámos em sítios onde nem os próprios israelitas são autorizados”
O ex-apresentador da SIC e jornalista da TVI, natural de Sesimbra, produziu e realizou o documentário Holy Redemption, que ofereceu aos espectadores uma visão muito próxima dos grupos de colonos da Cisjordânia.

O documentário da TRT World (emissora nacional da Turquia) conquistou o prêmio de melhor documentário e programa na mais recente edição do Festival Internacional de Documentários da Al Jazeera nos Balcãs (AJB DOC), realizado em Sarajevo. As câmeras registaram as atividades dos colonos, fanáticos religiosos que se empenham em expulsar os palestinianos das suas terras, revelando os atos de violência, muitas vezes engenhosos, que utilizam para alcançar esse objetivo.
O documentário Holy Redemption venceu o prémio em setembro deste ano, e foi gravado na Cisjordânia, uma região da Palestina, cerca de dois meses após o ataque do Hamas a 7 de outubro de 2023, e o consequente início da destruição de Gaza.
Depois do ataque terrorista do Hamas, é preciso dizer. Não vamos misturar as coisas. Eu não sou ativista, nem sou comentador, sou jornalista.
Tiveram a oportunidade de falar com uma diversidade de pessoas em Israel, incluindo ex-militares e indivíduos diretamente envolvidos nos movimentos de colonos extremistas responsáveis pela expulsão dos palestinos das suas terras. Quais foram algumas das fontes mais relevantes?
Entrevistámos pessoas do grupo Breaking the Silence, composto por ex-militares do IDF que não concordam com o que se passa, com o antigo primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert (2006-2009), assim como líderes dos movimentos dos colonos, dos chamados grupos messiânicos, extremistas e sionistas.
Esses grupos extremistas são amplamente desaprovados pela maioria dos israelitas. O primeiro-ministro Olmert ressaltou que essas fações são perigosas, violentas e que precisam de ser paradas.
No documentário, em momento algum afirmamos que os colonos matam os palestinianos ou que desejam anexar as suas terras. Quem o diz são eles. São eles que dizem que os palestinianos não têm lugar em Israel. Que se for preciso matam-nos. Que Gaza pertence a Israel e que a Palestina não existe.
São confissões provocadoras, ditas nas entrevistas de uma forma estranhamente natural. Como conseguiram captar estas declarações?
Eles tinham um microfone na lapela, um microfone à frente e duas câmaras. Sabiam que estavam a dar uma entrevista. Obviamente, como nós somos jornalistas, não revelamos as fontes. Mas foi difícil. Nós andámos em sítios onde nem os próprios israelitas são autorizados.
Eu sou aquilo que se chama um cético. Nunca acreditei muito na campanha, que eu sei como são estas coisas, nas campanhas.
O que posso dizer é que estive lá e vi a forma como, não o israelita comum, mas os colonos dos grupos extremistas, tratam os palestinianos. E estes grupos só têm poder porque o Netanyahu teve que se socorrer deles para conseguir maioria para formar governo.
Se foi difícil, foi relativamente complicado, mas fizemos o nosso trabalho, e fizemo-lo porque tínhamos boas fontes e bons contactos.
Os entrevistados mostraram-se interessados em expor a sua perspetiva da história?
Está no documentário, não é? Não tem a ver com a minha opinião. Não acredito em tudo o que se vê na televisão, a gente sabe como as coisas se fazem.
Agora… vi a forma como estes grupos extremistas tratam os palestinianos que estão nas zonas que eles querem controlar.
Gaza tem sido um dos assuntos mais mediáticos mundialmente desde o ataque do Hamas a 7 de outubro. Mas a equipa decidiu trabalhar a situação da Cisjordânia…O que se passa nesse território?
Os jornalistas andavam todos em Gaza. Já nós, percorremos a Cisjordânia quase do Norte ao sul, desde o início do deserto do Negev, quase a chegar ao Monte Sinai.
Na Cisjordânia, assim como em várias outras regiões em Israel, existem os chamados outposts e settlements. Um outpost é um tipo de posto avançado criado de forma informal por colonos em terras que pertencem aos palestinianos. O processo visa expulsar os palestinianos das suas habitações e geralmente começa quando uma família de colonos israelitas instala-se numa colina, por exemplo, estaciona o carro e começa a viver ali, dedicando-se à agricultura ou à criação de animais, como cabras ou ovelhas.
À medida que mais famílias se juntam, começam a construir casas, e abandonam os carros. Nesse momento, o outpost transforma-se num colonato, num settlement, uma espécie de aldeia em desenvolvimento, ilegal segundo leis internacionais.
As famílias de colonos que se instalam aí trazem consigo semirreboques, ferramentas agrícolas, equipamentos de carpintaria, geradores com painéis solares, bombas e tubos para extração de água de poços, além de fios para eletrificação. Também costumam contar com a proteção de 3 ou 4 reservistas do exército, armados e preparados para se defenderem, muitas vezes utilizando drones para segurança.
Nunca mais fui à Cisjordânia, acho que estes movimentos messiânicos, extremistas, têm sido um pouco mais apertados. Mas há um grande sentimento de impunidade. Eles fazem o que bem entendem.
Os settlements são ilegais no âmbito do direito internacional, e na legislação de Israel?
O settlement é ilegal segundo as leis internacionais, mas legal segundo as leis israelitas. Já o outpost é ilegal do ponto de vista internacional e da lei nacional. Quebra-se a própria lei.
O governo está a par desta situação?
Este governo está, claro que está. Filmámos inclusive uma reunião que decorreu numa festa, relativamente próxima a Gaza, onde podíamos ouvir explosões e helicópteros a sobrevoar a área. Nesse encontro discutiram que cada família que se deslocasse para Gaza receberia do Estado um quilómetro quadrado de terreno para cultivar. Essa reunião já foi em dezembro do ano passado.
Não tenho informações concretas sobre a situação atual.
No documentário, as declarações e os atos de violência mais aterrorizantes realizados pelos colonos (como o incêndio na cidade de Duma que matou os pais e o seu filho bebé na sua própria casa) partem de um grupo de fanáticos denominado Hilltop Youth. Pode-nos contar mais sobre este grupo?
É um dos grupos de colonos que vão abrir esses outposts. São casais muito jovens, já com três, quatro, cinco filhos, movidos por questões religiosas.
Estes movimentos utópicos estão intimamente ligados ao Partido Sionista. E o Partido Sionista não tem uma grande representação política. Praticamente só estes grupos é que votam nele. Mas o número de deputados que conseguiram eleger no parlamento de Israel (o Knesset) permitiu ao Netanyahu formar uma maioria no governo, porque mais ninguém se queria juntar a ele.
Por isso eles sabem que, apesar de serem poucos, são determinantes para legitimar o poder. Eu não tenho a menor dúvida que a grande maioria do povo israelita não concorda com eles.

E o exército?
Existem partes do exército que não concordam com a situação atual, o que explica a existência de movimentos como o Breaking the Silence, formado por ex-militares. Conversamos com alguns dos seus líderes em Tel Aviv e ouvimos jovens que serviram na Cisjordânia ou em Belém. O problema aqui é que os palestinianos estão isolados no mundo. Podemos andar aí com bandeiras a dizer “Free Palestine”, mas os países árabes não oferecem apoio nenhum, nem sequer aceitam refugiados.
Alguns dos países têm também acordos comerciais com Israel, o que demonstra que a situação é, em grande parte, um jogo político.
Os palestinianos estão tramados. A realidade é complexa. Por um lado, há extremistas sionistas que alegam que toda a terra pertence a Israel com base em argumentos religiosos, como a Bíblia. Esse tipo de fanatismo torna a mudança praticamente impossível, já que para eles, a reivindicação divina é incontestável.
Uma das questões mais destacadas no documentário é que, procurando evitar utilizar a violência direta, os colonos empregam estratégias mais subtis para persuadir as pessoas a abandonaram as suas casas e a saírem das suas terras. Quais são algumas destas estratégias?
Os outposts são uma estratégia pensada. São construídos sempre perto de uma vila de palestinianos para pressionar os moradores a sair dali. Como se vê no documentário, ocorrem frequentemente incursões noturnas para instigar o medo nas comunidades locais. Colonos armados com espingardas e metralhadoras percorrem as ruas a insultar e a intimidar as pessoas. E as pessoas abandonam as casas, porque os palestinianos não têm qualquer tipo de proteção, e muitas destas incursões são apoiadas pelos exércitos.
Outra estratégia — Em várias cidades encontram-se várias ruas repletas de lojas fechadas, que pertencem a comerciantes palestinianos. As lojas estão autorizadas a estar abertas, mas os militares restringem o acesso dos palestinianos a essas ruas, impedindo-os de frequentar os estabelecimentos.
Só há israelitas a transitar por ali, então não há clientes.
É afirmado que alguns deles estão mesmo fechados dentro das suas próprias casas.
Sim, há casos documentados. Embora eu não tenha visto pessoalmente, soube que em Jerusalém existe um palestiniano que se recusou a sair de casa. Então o exército construiu um muro ao redor da sua residência, impedindo-o de entrar ou sair, já há vários anos.
Muitos israelitas vão lá todos os dias para levar-lhe comida, água e outras necessidades básicas.
Vou dizer-vos uma coisa. Quando fui para lá era completamente cético. Hoje em dia já não sou tanto. Porque ninguém, por muita simpatia que eu tenha pelos meus amigos judeus, não se pode branquear a situação. Mas a verdade é que eu estive em sítios onde se cheirava a morte, mesmo sem haver cadáveres. Não é um cheiro efetivo, é um cheiro que sentes pelos sentidos. E senti o medo das pessoas. Na casa onde o miúdo que falaste foi queimado (início do documentário), cheirava mesmo a morte ali. Senti o terror, mas, acima de tudo, também senti a coragem. Ser palestiniano na Cisjordânia, em Israel, ou na Palestina, o que quiserem chamar, é muito difícil. Ainda mais quando eles estão abandonados por todos. Inclusive, pelos países árabes.
É importante reconhecer o estado da Palestina?
O que é que interessa? Provavelmente, o único país que realmente se dedica a manter viva a lembrança e a conscientização sobre o que está a acontecer na Palestina é a Turquia. É o único país.
Não há nenhuma televisão no mundo que tenha feito tantos documentários como a TRT (emissora pública de rádio e televisão da Turquia) sobre Israel ou sobre a Palestina.
E digo mais, contrariamente àquilo que se pode pensar, só houve dois países no mundo onde eu trabalhei, onde nunca ninguém me pressionou no meu trabalho — a Turquia e a Angola.
O jornalista tem uma carreira diversificada, tendo passado pela rádio, televisão e imprensa escrita, o que lhe proporcionou uma visão abrangente do jornalismo. Atualmente está envolvido em projetos de investigação jornalística, com foco nos temas sociais e políticos de maior relevância. |
Nunca tentaram coagir o meu trabalho. No país de abril [Portugal] tentaram fazer isso. Houve quem me pedisse inclusive para forjar notícias porque interessava à estratégia do grupo. Em Portugal fizeram isso, mas nem na Turquia, nem em Angola, aconteceu tal coisa.
Não recebemos diretrizes sobre com quem falar ou o que filmar. Fomos informados sobre o projeto e orientados a prosseguir conforme necessário. Estivemos sempre em contacto, com chamadas frequentes para garantir que tudo estava bem. O mesmo em Angola.
Onde é que o documentário já foi apresentado?
O documentário foi exibido apenas na televisão turca, após a sua estreia no festival de Sarajevo. A primeira exibição pública ocorreu num cinema histórico em Istambul. Após a apresentação em Sarajevo, também foi transmitido na televisão em Israel, embora o acesso lá seja mais difícil, e foi visto por representantes políticos de Washington. Aqui, a RTP já manifestou interesse em transmitir o documentário e, segundo informações, a TRT não cobrará nada por isso. Além disso, o Cine Teatro João Mota em Sesimbra também quer exibir o documentário, e eu já pedi autorização à Turquia, que foi rapidamente concedida.
Mas em Portugal as pessoas querem é o Big Brother. Dei entrevistas a todo o mundo, televisões americanas, televisões e rádios brasileiras, para a França, para a Inglaterra, para a Alemanha, para os países balcânicos todos, para a Alemanha, para a Hungria, para a Arménia, para a Albânia, Bósnia-Herzegovina, Polónia, Sérvia, aqueles países ali todos, dei entrevistas para a Al Jazeera e para Omã. Tenho um telemóvel cheio de mensagens a convidarem-me para França para a maior produtora de documentários. E, em Portugal, dei uma entrevista — esta.

Valoriza esse mediatismo?
Eu fiz o meu trabalho, e quero estar tranquilo, lá está, não sou ativista, apenas falo daquilo que vi.
Agora… não é todas as décadas que um jornalista português participa num documentário que ganha um prémio internacional de jornalismo, ainda mais sobre um tema desta relevância. Mas para mim, a maior honra e o maior motivo de orgulho foi a imprensa nacional não ter sequer falado nisto, é a maior honra e é o maior orgulho que eu tenho, sabem por quê? Porque isto prova que, efetivamente, eu não estou na mão de ninguém e que sou mesmo independente, coisa que de nenhum deles se pode orgulhar, nenhum deles mesmo, e eu posso.
Vivemos num país onde houve jornalistas que desobedeceram a ordens de organizações internacionais e entraram em países que estavam em guerra. Andaram 20 quilómetros, foram atacados, levaram um tiro nas pernas e depois escrevem livros como grandes especialistas nesses países.
A grande maioria dos comentadores e especialistas internacionais na televisão nunca estiveram nesses países e se tiveram foi de férias nas grandes cidades, portanto, eu fico muito feliz por não estar associado a esse tipo de fraude, porque eu estive em sítios onde 99% dos comentadores em Portugal nunca meteram os pés. Estivemos em sítios e falámos com pessoas que todas as grandes televisões do mundo, como a BBC e a CNN, quiseram, mas nunca conseguiram chegar. Mais ninguém teve acesso a estes contactos.
Documentário completo disponível no Youtube:
Se tiver sugestões ou notícias para partilhar com o Diário do Distrito, pode enviá-las para o endereço de email geral@diariodistrito.pt
Sabia que o Diário do Distrito também já está no Telegram? Subscreva o canal.
Já viu os nossos novos vídeos/reportagens em parceria com a CNN no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Siga-nos na nossa página no Facebook! Veja os diretos que realizamos no seu distrito
@seguidores