Jornalismo, (des)informação e fake news. Quem diz a verdade merece castigo?
As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor.
A 7 de dezembro de 2005, no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel da Literatura, o dramaturgo inglês Harold Pinter afirmou: «A generalidade dos políticos, tanto quanto nos é dado a ver, [não se interessam] pela verdade mas pelo poder e pela manutenção desse poder. Para manterem esse poder, é fundamental que as pessoas continuem na ignorância, que ignorem a verdade, e até a verdade das suas próprias vidas. Aquilo que nos rodeia é portanto uma vasta tapeçaria de mentiras, da qual nos vamos alimentando». Se assumirmos que o jornalismo é um “quarto poder”, autónomo, crítico e vigilante, podemos considerá-lo o melhor antídoto contra esta realidade. Contudo, e sem prejuízo de existirem honrosas excepções, parece-nos mais uma representação mitificada do que um retrato fiel do papel desempenhado pelo jornalismo na sociedade. O facto de a imprensa escrita e outros media serem, para a maior parte das pessoas, os principais veículos de aquisição de informação, formação de opinião e construção de conhecimento sobre o mundo que as rodeia, torna este panorama particularmente preocupante.
E que panorama é este? Em Jornalismo, Grupos Económicos e Democracia (2006), Fernando Correia já apontava algumas das suas características fundamentais. Por um lado, a concentração da propriedade nos media dominantes sugere que a expressão “quarto poder” é, como a morte de Mark Twain, manifestamente exagerada. Com efeito, diz-nos Correia (pp. 23-24), «os media transformaram-se numa peça fundamental e mesmo insubstituível dos mecanismos de dominação política, social, cultural e ideológica, não só por parte dos países capitalistas mais poderosos, nomeadamente os EUA, sobre os países menos desenvolvidos, mas também das classes dominantes nacionais sobre as outras camadas sociais que constituem a esmagadora maioria das populações».
Daqui decorrem inúmeras consequências nefastas para as liberdades de expressão e de acesso à informação, bem como uma intensificação do primado da “informação-mercadoria” que afeta dimensões como, por exemplo: «o estatuto do jornalista, os critérios jornalísticos, a definição das agendas, os temas abordados e os formatos informativos, e até as orgânicas e estruturas empresariais, privilegiando o interesse do público em desfavor do interesse público e desvalorizando a responsabilidade social dos media» (p. 40). Entre nós, o caso Global Media, por exemplo, ilustra bem o carácter problemático da existência de estruturas de propriedade e gestão de enorme opacidade. A um outro nível, também a hipocrisia da Lusa, RTP, Público, Expresso e Observador que, depois de nada terem dito aquando da censura dos media russos por parte das instâncias europeias, vieram agora manifestar o seu repúdio pela retaliação levada a cabo pela Rússia, considerando-a “atentatória da liberdade de informação”. É melhor nem falar do modo como se cobriram jornalisticamente os Panama Papers, ou do silêncio relativamente a Julian Assange e Pablo González (jornalista espanhol encarcerado há dois anos na Polónia sem qualquer acusação), entre muitos outros exemplos pouco edificantes.
Neste sentido, jornalismo e media, nomeadamente aqueles considerados “de referência”, constituem mecanismos fundamentais, não para a desocultação da verdade e a construção de consciência crítica, mas sim para reforçar e amplificar o poder das classes dominantes. Como diria Noam Chomsky, para “fabricar o consentimento” e, deste modo, contrariar a ideia e o espírito de serviço público que deveria nortear o seu funcionamento. E o serviço público, como nos diz Vicente Romano, em A Formação da Mentalidade Submissa (2006, p. 99), «não equivale a mercantilismo selvagem, a dar ao público “aquilo que o público quer” (medido isso em indicadores de vendas ou de audiências), ou que os anunciantes e patrocinadores estejam dispostos a financiar». Deve, antes de mais, assentar na diversidade e no pluralismo de opiniões que, como é evidente, não decorre apenas e só da existência de um grande número de jornais e revistas, emissoras de rádio, canais de televisão, sites, redes e plataformas digitais. Para haver verdadeira liberdade de escolha é preciso que existam diferenças substantivas e não a mera repetição de conteúdos idênticos em vários suportes distintos.
A falta de pluralismo é, aliás, um dos grandes problemas dos media portugueses, particularmente no comentário político, como demonstra o relatório Comentário político nos media 2023. Análise ao comentário político em Televisão, Rádio e Meios online em Portugal (2024, p. 16), onde se lê que «em 2023, na televisão, tal como nas edições anteriores deste relatório (2016, 2019, 2020, 2022), verifica-se entre os comentadores com espaço semanal de opinião e tendência política definida, uma maior proporção de comentadores posicionados à direita do espectro político (60% do total), face aos de esquerda (40%) (…) a análise a outros media em 2023, permite constatar que esse desequilíbrio, em favor da direita, também se encontra na rádio (55% vs. 45%) e de forma mais acentuada nos meios online (64% vs. 36%) (p. 16)». Se dúvidas houvesse, aquilo que recentemente sucedeu, por exemplo, no Diário de Notícias, com a rescisão unilateral de Ana Drago (ex-deputada do BE), Paula Cardoso (jornalista e activista antirracista) e António Brito Guterres (“cronista” das periferias e das margens metropolitanas), ou na CNN Portugal, com o afastamento de Bernardino Soares (ex-deputado do PCP), e no Público da advogada Carmo Afonso, ilustra bem este fenómeno de silenciamento das vozes mais à esquerda. Como diz o povo: “manda quem pode, obedece quem deve”.
À concentração de propriedade e à falta de pluralismo junta-se a degradação das condições de trabalho dos jornalistas, nomeadamente daqueles que se encontram na base da “pirâmide”. Profissionais mais jovens cujas vidas são, à semelhança das de tantos outros trabalhadores, marcadas por uma enorme insegurança laboral, pela submissão permanente a estruturas autoritárias que comandam o seu quotidiano e pela precariedade que inferniza as suas vidas. Como assinala o ensaísta António Guerreiro, em Zonas de Baixa Pressão. Crónicas Escolhidas (2021, p. 194), trata-se de uma «massa [de] jornalistas proletarizados, sem qualquer autonomia, mesmo que continuem a assinar com o nome próprio».
Um terço dos jornalistas portugueses recebe menos de mil euros líquidos, havendo, como sublinha Daniel Oliveira, no artigo “Greve do “jornalismo mil euros”: em nome da democracia”, «muitos repórteres e editores de imagem com falsos recibos verdes, estagiários a receber 150 euros por mês, freelancer a trabalhar por 20 euros a peça». Com este nível de proletarização, questiona ainda o autor, «será possível escrutinar os poderes públicos e privados?». Claro que não.
Tudo isto sucede num contexto de aceleração insana dos ritmos de trabalho e produção noticiosa – é preciso alimentar torrencialmente as plataformas e os suportes informativos, 24 horas por dia –, de erosão acentuada das redações e consequente perda de massa crítica, conhecimentos e práticas cimentadas ao longo de décadas, de crescente sofisticação das fake news, de aceitação tácita de um ambiente de “pós-verdade”, em suma, de intoxicação, empobrecimento e degradação da esfera pública. Mas será que nestas circunstâncias, sem tempo para pensar nem reflectir, é possível fazer bom jornalismo? Numa entrevista dada ao extinto Setenta e Quatro, Diana Andringa oferece a resposta: «Quando te dizem que tens dez minutos para escrever dez mil caracteres, não és livre. Estas velocidades infernais não servem para nada (…) Um jornalista não é inteiramente livre se não tiver tempo para a reflexão, porque o jornalismo não se faz carregando num botão. Somos seres humanos e temos de pensar sobre o trabalho que fazemos, levantar dúvidas. Precisamos de camaradas na redação com quem conversar».
Mas se há algo que caracteriza o capitalismo neoliberal é a generalização de um individualismo que torna mais difícil a construção de espírito coletivo e solidariedade entre pares. Nisto, os jornalistas não se distinguem de outros trabalhadores. Talvez tenham apenas levado mais longe o deslumbramento resultante da ocasional proximidade com os ricos e poderosos. Que os jornalistas, se forem bons profissionais, nunca poderão ser. Porque o bom jornalismo é sempre contrapoder, incomoda muita gente e nunca deixa de procurar a verdade dos factos. E isso, como é sabido, “não dá saúde, nem faz crescer”. Por outro lado, só assim se faz do jornalismo um instrumento contra a ignorância e uma ferramenta para a construção de sociedades mais democráticas, informadas e livres. E é isto que o torna insubstituível.
André Carmo
Geógrafo e professor universitário
(Artigo elaborado a partir da intervenção de abertura do debate “Jornalismo, (des)informação e fake news. Quem diz a verdade merece castigo?”, realizado no dia 12 de julho de 2024, na Cooperativa Cultural Popular Barreirense)
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