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Grupo Desportivo Fabril: um século de desporto, comunidade e resistência associativa no Barreiro

No Barreiro, o Grupo Desportivo Fabril é símbolo do associativismo português. Nascido em 1928 na Companhia União Fabril (CUF).

No portão do Pavilhão Vítor Domingos, no Lavradio, há um cartaz onde se lê: “És tu que dás vida ao nosso pavilhão.” A frase, um apelo à comunidade, contrasta com as portas fechadas por iniciativa privada.

Desde abril, o acesso ao pavilhão tem sido condicionado, e a 16 de outubro as portas fecharam-se definitivamente, sem aviso e sem previsão de reabertura. O edifício, onde treinavam as modalidades de hóquei em patins e patinagem artística do Grupo Desportivo Fabril, foi vendido à sociedade Courtesy Wish, Lda.

Muito se fala sobre o declínio do movimento associativo, nomeadamente em Lisboa, onde a gentrificação e a especulação imobiliária levaram muitas coletividades a fechar. Também no Barreiro, o Grupo Desportivo Fabril, quase cem anos depois da fundação, enfrenta o desafio de não ficar sem espaço.

Da CUF ao Grupo Desportivo Fabril

Grupo Desportivo Fabril é símbolo do associativismo português e do passado operário local. Nascido em 1928 na Companhia União Fabril (CUF), uma das maiores empresas industriais de Portugal na primeira metade do século XX.

“Costumava dizer-se que uma pessoa podia nascer na CUF e morrer na CUF”, recorda Rinito, sócio e treinador do Fabril, evocando um tempo em que “havia escolas, colónias de férias, padaria, grupos desportivos e culturais — tudo dentro do complexo”, estratégias usadas durante o Estado Novo para os empregadores garantirem que os trabalhadores não faltavam ao trabalho por não terem onde deixar os filhos.

Ritino, sócio do fabril e treinador de hóquei

Numa época em que a maioria da população vivia “miseravelmente”, quem foi criança na altura como Rinito recorda que “fomos uns privilegiados, porque tivemos tudo. A maior parte das pessoas e das crianças viviam miseravelmente em todo o país. Tínhamos toda esta área social, desportiva e cultural que nós participávamos”.

Recorda que o privilégio que sentia vinha do acesso a coisas que atualmente podem parecer garantidas, como praticar desporto e ter sapatos. “Levávamos o dia todo a praticar desporto.” Sublinha o medo dos pais de que estragasse os sapatos “porque eram muito caros, mas (no clube) davam-nos sapatilhas Sanjo”. Numa época em que grande parte da população não tinha acesso a sapatos ou tinha um único par, que usava ao domingo.  

Apesar da ditadura fascista que impunha pressões, discriminações e perseguição, o associativismo, pela natureza popular, gerava consciência cívica, de cultura, desporto e vida democrática dos cidadãos, mas atualmente enfrenta muitos obstáculos para sobreviver.

O associativismo em crise — e o Fabril como resistência

Apesar do fim da CUF, o Fabril manteve a atividade e nunca deixou de ser um clube “eclético e formador”, mantendo viva uma história de excelência em modalidades como futebol, futsal, hóquei em patins, atletismo, ginástica, judo, patinagem artística e ténis.

O clube tornou-se uma referência do desporto e em especial do hóquei em patins, tendo sido a casa de lendas da modalidade como Leonel Fernandes, campeão nacional em 1965, Zé António, o “Flecha”, o guarda-redes Vítor Domingos, Salustiano Coelho, Filipe Alves, Rui Batista, Hernâni Nunes e José Afonso Almeida “Puskas”.

Atualmente está sem espaço para treinar a patinagem. A falta de instalações adequadas obriga o grupo a recorrer a espaços emprestados comprometendo o trabalho das modalidades, especialmente o hóquei em patins, e pondo em causa a continuidade de um projeto desportivo e social com quase um século de história.

Segundo Jorge Duarte, pai de uma das crianças que praticava hóquei no Fabril, “o movimento associativo está mal. Reflexo da sociedade que temos hoje em dia, muito virada para o individualismo e muito pouco para um objetivo comum”.

Jorge Duarte

O Fabril é um espaço de inclusão. “Temos protocolos com a Câmara do Barreiro que permitem às crianças carenciadas participar sem custo acrescido”, explica Jorge Santana, Diretor do Fabril e coordenador do hóquei em patins. “É um dever social. O desporto é educação, é saúde física e mental, é formação humana.”

Jorge Santana, Diretor do Fabril e coordenador do hóquei em patins.

Mas a sobrevivência é frágil. “Vivemos de quotas  e patrocínios. É uma gestão apertada”, admite Santana. “Os apoios municipais existem, mas são insuficientes. E, no caso do hóquei, é a única modalidade do concelho sem protocolo”, afirma Rinito.

Apesar das dificuldades, o clube continua ativo, sustentado pela dedicação e pelo sacrifício de dirigentes e treinadores. “Nada se faz sem trabalho nem sem sacrifício”, diz Santana. “Muitos de nós sacrificam a família, o tempo livre e até o dinheiro”. “Eu acredito na humanidade. Nós estamos a trabalhar, a ensinar a patinar, a ensinar a jogar hóquei.

“A partir do momento em que não haja coletividades numa cidade é muito difícil existir e perdurar a cultura e a história para gerações vindouras. É uma sociedade vazia de objetivos”, sublinha Jorge Duarte.

Para Jorge “o movimento associativo é a agregação. As pessoas juntam-se por interesses que são comuns, mas depois crescem e fazem todo o desenvolvimento cultural, social e desportivo. Leva as sociedades a crescer, a pensar a sociedade em si e as suas necessidades e ambições. O esvaziamento do movimento associativo pode corresponder a um retrocesso de um meio de civilização”, afirma Jorge Duarte.

O hóquei sem espaço de treino

Entre as modalidades, o hóquei em patins ocupa um lugar especial. Rinito, fala com emoção do trabalho feito com as escolas da região. “Em 1999, lançámos um projeto de ensino da patinagem de base com a Câmara da Moita, depois com a Câmara do Barreiro. Chegámos a envolver 12 escolas e mais de 500 crianças.”

A ideia era simples: ensinar a patinar primeiro, formar jogadores depois. “Sabíamos que sem uma base de meninos muito pequenos, o hóquei nunca teria futuro. E conseguimos criar essa nascente.”

O clube manteve sempre uma forte missão social. “Nenhuma criança, por muito pobre que fosse, ficou sem praticar hóquei. Arranjávamos patins usados, sticks emprestados, equipamentos oferecidos. O desporto é para todos”, sublinha Santana.

Segundo Rinito, “andar de patins não é natural. É um artifício da humanidade” que significa aprender “novamente a andar e com rodas. Eu posso criar uma equipa de futsal. Daqui a um mês já tenho os todos inscritos. Eu não consigo fazer isso com o hóquei. Leva muito tempo. Um miúdo leva um ano desde que começa a patinagem zero até à patinagem razoável. É um desporto de grande coordenação motora. Com estes patins, quatro rodas e dois eixos, está em desequilíbrio total e para se equilibrar tem de trabalhar desde a ponta dos cabelos até a ponta dos pés. Tens de pensar no jogo, na tática, na coordenação e saber patinar. É realmente completo”.

“Por ser muito trabalhoso dá hábitos de trabalho que se refletem no aproveitamento escolar”, acrescenta Rinito.

Jorge e o filho demoravam 5 minutos a chegar ao pavilhão de treino. Agora, têm de fazer 20 km para chegar ao novo espaço onde o filho pratica hóquei, depois do fecho do pavilhão. Segundo Jorge “saber patinar é sobretudo travar. Mexer o corpo para a direita sem pensar que queres ir para ali e para ali. Fazer parte do movimento.” Explica que num dos treinos de hóquei“ houve um aluno que foi a jogo, e fez um corte na cabeça porque não travou a tempo e bateu no stick do adversário”.

O espaço de treino precisa de tabelas e um chão preparado para o uso de patins o que dificulta a procura de um local adequado para a modalidade. Segundo Jorge Santana, “temos procurado soluções e falado com outros clubes. O próprio Rinito tem solicitado à administração do Arco Ribeirinho uma reunião para que nós possamos, junto com eles, encontrar alguma solução dentro do espaço industrial. Mas até agora não conseguimos encontrar”. “A melhor solução seria construir um pavilhão novo”.

Jorge Duarte refere que ainda “não houve resposta municipal de se construir, ou projetar, em consonância com o clube, uma alternativa. A câmara estava habituada a que fossem os privados a dar as infraesturas ao seu clube”, mas essa é uma oferta que “pode desaparecer a qualquer momento”.

Rinito explica que “há uma escola em Santo António que tem as dimensões ideais para o Hóquei, é só meter tabelas. Eu não sei se as escolas têm pisos bons para patinagem, mas isso é uma questão de investimento. Não é custo, é investimento. Existem pavilhões, pelo menos nas escolas secundárias, que têm essas condições.

No entanto, as escolas também têm várias modalidades desportivas o que significa que em muitos casos a disponibilidade depois do fim da escola, das 17 horas, até às 23 horas, pode já estar preenchida por outros desportos. Rinito diz que a solução imediata passa “sempre pela liderança da Câmara, é arranjar um espaço, mesmo que não tenha todas as condições, mas que tenha os mínimos para podermos construir a próxima época 2026/2027”, afirma Rinito.

Entre várias ideias está a criação de uma Cidade Desportiva do Barreiro e da Moita, um projeto previsto desde 1993 no Plano Diretor Municipal mas nunca concretizado.

“Seria uma infraestrutura essencial para o hóquei, para a patinagem e para todas as modalidades. Está previsto há 30 anos, mas nunca saiu do papel”, lamenta Jorge Duarte. “Há 17 hectares de espaço que poderiam servir para isso. Em 2019, quando os terrenos foram vendidos, o município podia ter exercido o direito de preferência. Não o fez. E hoje continuamos sem resposta.”

Ainda assim, o Fabril resiste. Segundo Santana “essencialmente ensinamos que sejam boas pessoas e sejam felizes.”


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