Opinião

Educação e Escola Pública. Gaiolas, Asas, Smartphones e que mais?

As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor.

Que a educação – entendida num sentido amplo como desenvolvimento das pessoas e aquisição de saberes de vária ordem – é um elemento central das sociedades contemporâneas é indiscutível. Que um dos espaços onde esta tem lugar, sem que seja cobrado bilhete à entrada, é a escola pública, e que isto faz dela uma instituição fundamental para a construção do nosso destino colectivo, também parece consensual.  Tal como reconhecer que nos últimos 50 anos existiram progressos notáveis na escolarização da população portuguesa. Daqui para a frente surgem os problemas, os desafios e os paradoxos como, de resto, a alusão ao conhecido aforismo do pedagogo brasileiro Rubem Alves – «há escolas que são gaiolas, há escolas que são asas» – pretende traduzir. Olhemos para alguns deles.

Num contexto onde, como sugere Lícinio Lima, se naturalizou a “revolução empreendedora”, à semelhança de tantas outras instituições, a escola transformou-se sob o signo do deus-mercado, mimetizando e reproduzindo os modelos de funcionamento das empresas. A obsessão permanente com a monitorização da eficiência e da eficácia e a avaliação de tudo com base em indicadores, resultados, metas e evidências, em busca de uma excelência performativa que leva à perda de saúde mental e física; a regulamentação asfixiante operada por meio de intermináveis processos hiper-burocráticos; a redução da figura do professor à de uma espécie de funcionário (ou colaborador?) que, pleno de espírito empreendedor e esvaziado de qualquer autoridade, administra o ensino; a erosão democrática, a perda de colegialidade e a concentração de poder; e o elogio da meritocracia, do individualismo e da competitividade exacerbada como princípios educativos, são hoje traços comuns ao quotidiano de muitas escolas.

Neste contexto, quando Raoul Vaneigem num pequeno livrinho intitulado Aviso aos alunos do básico e do secundário (1995), se interrogava: «pois não tem até hoje obedecido a empresa escolar a esta preocupação dominante: melhorar as técnicas de domesticação com vista a que o animal dê lucro?» (p. 11), não parece existir margem para grandes discordâncias. E é por isso que a discussão em torno dos rankings ocupa um lugar tão central no debate sobre educação em Portugal. Todos os anos, com precisão cirúrgica, demonstrando que o atraso pode afinal não ser uma patologia nacional, a divulgação dos rankings das escolas abala o país. De um lado estão aqueles que querem promover o sempre apetecível negócio privado da educação, acolitados pelos ingénuos que dão por certa a neutralidade técnica do instrumento de medição, do outro, aqueles que defendem o valor intrínseco da escola pública e a necessidade de reafirmar e valorizar a noção de serviço público que, debaixo de toda a tralha ideológica que nos têm impingido, se debate com sérias dificuldades.

Os resultados escolares – reduzidos estes às notas alcançadas em exames nacionais – de crianças e jovens são resultado, essencialmente, das condições sociais, económicas e culturais em que foram criadas. Como diria o poeta António Aleixo: Não sou esperto nem bruto / Nem bem nem mal educado / Sou simplesmente o produto / Do meio em que fui criado. Que as elites e as classes dominantes ocultem esta verdade não deve causar surpresa. Afinal de contas, tal como os mágicos nunca revelam os seus truques, os ricos e poderosos raramente admitem que a posição que ocupam na pirâmide social se deve mais aos privilégios herdados e aos recursos de que dispõem do que ao seu mérito individual, que é como quem diz, a um espírito de sacrifício sobre-humano, a uma inesgotável capacidade de trabalho árduo e a uma invulgar inteligência merecedora de admiração e espanto generalizados.

Não é por acaso que o melhor preditor de sucesso escolar de qualquer criança é o grau de escolarização dos seus pais. Não é por acaso que no topo dos rankings se encontram as escolas privadas e na base as escolas inseridas em Território Educativos de Intervenção Prioritária e outras localizadas em contextos sociais marcados por inúmeras vulnerabilidades. Comparar o incomparável – pois a escola pública não selecciona quem nela entra pelo tamanho da carteira – não é só um erro metodológico clamoroso, é uma mentira, uma manobra de propaganda, uma forma de publicidade gratuita para os colégios privados. Como diria Goebbels, uma mentira repetida mil vezes acaba por se tornar verdade e, pelo caminho, estigmatizam-se as escolas públicas e atropela-se a sua função de “elevador social”.

Tal como a Terra gira à volta do Sol (excepto para terraplanistas), também sabemos, ano após ano, que vão faltar professores nas escolas. Nuns anos mais, noutros menos, mas faltam sempre. E haverá melhor reflexo do desinvestimento a que foi votado o ensino em Portugal ao longo de décadas por parte de sucessivos governos liderados pelo PS e pelo PSD (com o apoio do “partido-rémora” CDS)? Trata-se de um problema que se arrasta há décadas e que põe em causa o direito constitucional à educação e ao ensino de qualidade para todos. O actual governo apresenta como solução um plano que, entre outras iniciativas, pretende recuperar para as escolas muitos daqueles que enquanto nelas estavam contavam os dias para a sua aposentação, tamanha foi a degradação das suas condições de trabalho, mas também recorrer a bolseiros de doutoramento, que é como quem diz “paus para toda a obra”, para tapar os buracos que há muito são conhecidos. Um penso rápido.

Entretanto, o investimento público continua muito abaixo dos 6% do PIB recomendados por várias organizações internacionais, o número de pessoas formadas em ensino é baixo e cerca de um em cada três professores vai aposentar-se até ao final da década. A gestão democrática não passa de uma miragem, avoluma-se a pressão para a criação de um carreira específica para directores, a municipalização acentua os riscos de interferências autárquicas na vida das escolas e dos professores e, pela primeira vez desde 2015, o governo reforçou o apoio a colégios com contratos de associação. “Co´a direita no poder”, já cantava o Barata-Moura.

Para além de tudo isto, nos últimos anos fomos atropelados pelo mundo digital e pelos desafios que este coloca a professores e escolas, mas também aos estudantes e às suas famílias. As consequências do uso excessivo de dispositivos digitais por crianças e jovens são bem conhecidas. E entre a sua utilização regrada e a digitalização absoluta do espaço e do funcionamento da escola, através da profusão e omnipresença de televisões, computadores, tablets, smartphones, consolas e redes sociais, é preciso encontrar soluções que, como diria o neurocientista Michel Desmurget, não transformem as escolas em Fábricas de Cretinos Digitais (2021).

Na sua ausência, e num quadro em que qualquer expressão de planeamento público é vista com enormes reservas, sintomático da captura do pensamento e das instituições pela hegemonia neoliberal, professores e educadores dividem-se entre os que privilegiam soluções fáceis com resultados duvidosos, como o proibicionismo puro e duro (que dificilmente impedirá o cyberbullying, dependências digitais e problemas de saúde mental), e aqueles que, abrindo os braços às múltiplas possibilidades deste admirável mundo novo digital podem estar a cavar a sua própria sepultura. Não apenas porque a pressão para a substituição de trabalho vivo por trabalho morto é crescente, mas também porque o controlo e a vigilância de todo e qualquer gesto reduzem a escombros qualquer ideia de liberdade. E sem esta o pensamento e a imaginação definham e ficamos entregues a uma selva digital. Até porque não há livro que resista ao TikTok.

A educação e a escola pública não podem ficar reféns de um deslumbramento bacoco por tudo o que é inovação tecnológica (e já agora pedagógica), nem de uma paisagem sociocultural vorazmente acelerada, produtora em série de narcisistas incapazes de discernir entre o que é relevante e o que não é. Se existe futuro para elas – e eu quero crer que sim – este residirá seguramente na valorização e dignificação de todos os profissionais que lhes dão forma, na responsabilização e sensatez de estudantes e suas famílias (sem galinhas, tigres ou helicópteros estacionados à porta), e na construção de formas de governação alternativas que ponham cobro ao caminho de desinvestimento e desconsideração que tem vindo a ser seguido.

Se, como nos diz Rubem Alves em Conversas com quem Gosta de Ensinar (2003), a «educação é o processo pelo qual aprendemos uma forma de humanidade» (p. 59), somente através dela podemos aprender a ser humanos e a viver juntos preservando as nossas diferenças. E este é o caminho que importa trilhar. Sem artificialismos, com muita imaginação e pensamento crítico, respeito mútuo, integridade e empatia e, sobretudo, muita inteligência natural generativa.


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