“Agustinópolis” no CCB: espetáculo do Teatro O Bando e Setúbal Voz reflete sobre ódio, comunidade e ruína social
O Centro Cultural de Belém acolheu a estreia de Agustinópolis, um espetáculo que cruza teatro e ópera para refletir sobre a vida em comunidade, o ódio, tensões, contradições, fragilidades e recomeço. A criação do Teatro O Bando e da Associação Setúbal Voz, com encenação de João Brites e música de Jorge Salgueiro, parte do universo de Agustina Bessa-Luís para construir uma metáfora sobre o presente — entre a construção e o colapso de uma cidade.
O Centro Cultural de Belém (CCB) recebe esta sexta-feira, 17 de outubro, a estreia de Agustinópolis, um espetáculo que nasce da colaboração entre o Teatro O Bando e a Associação Setúbal Voz. A criação, encenada por João Brites, com música original de Jorge Salgueiro e dramaturgia de Miguel Jesus, integra as comemorações do centenário de Agustina Bessa-Luís, por iniciativa de Mónica Baldaque e da Comissão Organizadora do Centenário da escritora.
A partir das palavras e personagens de Agustina, o espetáculo propõe uma viagem operática e teatral que reflete sobre a vida em comunidade, as suas tensões e contradições. “É um espaço cruzado por 96 personagens, com encontros e desencontros, amores e dissabores”, explica o dramaturgo e assistente de encenação Miguel Jesus. “A narrativa não é tanto a de cada personagem, mas sim a daquela comunidade, daquele grupo de pessoas que vai erigindo uma cidade, que depois, se calhar, acaba por desenvolver sistemas de desconfiança, ou de zanga e até onde é que isso chega. E é também uma maneira de falarmos dos dias de hoje. De onde é que nós estamos. Até onde é que a democracia se aguenta e a Europa. Já esticámos tanto os limites e depois?”
Entre o teatro e a ópera
Agustinópolis é apresentado como um “espetáculo de teatro e ópera”, em que se cruzam atores e cantores, numa fusão que recusa fronteiras rígidas entre linguagens artísticas. “Queríamos que não fosse uma ópera tradicional, mas também não apenas teatro. Como fazer uma ópera que não é uma ópera?Como fazer um espetáculo de teatro que também não é? Como fazer uma coisa que nós ainda não conhecemos? Estamos sempre à procura dos métodos que nos levam a fazer um espetáculo que nós ainda não sabemos fazer”, diz Miguel Jesus.
Com o Coro Setúbal Voz em palco, dirigido por Jorge Salgueiro, o elenco conta com Bibi Gomes, Joelle Ghazarian, Juliana Boyko, Juliana Pinho, Nicolas Brites e São Nunes, entre outros intérpretes e músicos. A cenografia é de Dora Sales e João Brites, e os figurinos de Catarina Fernandes.
Uma reflexão sobre o presente
Inspirado na obra de Agustina, o espetáculo observa a construção e a ruína de uma cidade, fala sobre o povo, mas sem idealização. É um espétaculo que leva à interrogação sobre a nossa própria natureza, sobre as pulsões de ódio e de maldade que atravessam a vida em comunidade.
“Somos maus uns para os outros. E que, ainda por cima, estamos a ser fomentados, arduamente, todos os dias, para uma cultura de ódio contínuo”. “Nós também quisemos apropriarmos desse lado que a Agostinha tem, um bocado mais mordaz e mais sarcástico e maledicente, para refletir um bocado sobre o que é a nossa natureza humana. Somos nós. O problema é que todos temos pulsões que não são assim tão explicáveis e que não são assim tão ternos”, afirma Miguel Jesus.
Segundo Miguel Jesus, Agustinópolis “não é um espetáculo de esperança”, mas um exercício de reflexão sobre o tempo presente. “Mais uma apologia ou um elogio de maldade e de ódio. Não como aquilo que devemos fazer, não é didático, mas como aquilo que estamos a atravessar e como atravessar. Nós todos fomos criando uma sociedade em que vivemos todos juntos sob certas leis e certas regras, mas essas leis e essas regras, se não estiverem cheias de compaixão, tanto podem ser benfazejas como criminosas. Depende de como é que são aplicadas e de quanta capacidade emocional nós estamos”.
Nesta narrativa sobre uma cidade que acaba por implodir o dramaturgo explica que vivemos num momento em que é fácil criar animosidade. “Nós compreendemos, quando estamos a falar que é um espetáculo sobre o ódio, sentimos que cada vez a sociedade está mais compartimentada. É mais fácil criar animosidade. Também conseguimos compreender que isso dá jeito a certos líderes, a certos grupos, para dividir para reinar”.
E por estas razões sente a importância de “todos nos interrogarmos mais sobre isso e se conseguirmos ainda encontrar uma coisa qualquer que valha a pena na humanidade, então estamos a dar um passo em frente, no sentido de conseguirmos olhar olhos nos olhos, confrontarmo-nos sem animosidade, em paz, tentando encontrar aquilo que são realmente as forças conjuntas – ao contrário daquilo que nos parece que estamos a ser educados para fazer”.
O Bando: 50 anos de criação coletiva
Fundado em 1974, o Teatro O Bando é uma das cooperativas culturais mais antigas do país. Ao longo de cinco décadas, tem desenvolvido uma prática artística marcada pela experimentação e pela dimensão comunitária. “O segredo é a renovação constante e o confronto criativo”, resume Miguel Jesus. “Há um cruzamento de gerações permanente e uma liberdade que permite arriscar, mesmo em produções de grande escala.”
Apesar da sua longa história, o grupo mantém uma postura de inquietação permanente. “No Bando dizemos muitas vezes que fazemos espetáculos que ainda não sabemos fazer”, acrescenta o dramaturgo. “Não seguimos fórmulas. Queremos continuar a provocar-nos e a reinventar-nos.”
Para Miguel Jesus no teatro “não estamos reféns de nenhum tipo de agenda”. Conta como a dois dias das estreia passáram a “tarde toda a fazer, a remarcar, duas cenas completamente diferentes do que alguma vez foram. Precisamente porque temos liberdade para fazer. Temos a sorte de poder fazer aquilo que gostamos, com os meios que temos, não digo sem prestar contas a ninguém, mas com uma dose de liberdade muito grande.
O teatro não tem importância nenhuma. Essa é a sua grande vitória. O teatro em si, tem pouca importância, mas a capacidade disso gerar a necessidade de sonhar, inventar coisas de uma outra maneira, pensar de outra maneira, isso tem importância”, afirma o dramaturgo.
Com cerca de cem pessoas envolvidas na produção — entre atores, cantores, músicos e técnicos —, Agustinópolis é uma coprodução do Teatro O Bando e a Associação Setúbal Voz.
Para o público, o convite é claro: “Espero que as pessoas venham disponíveis. Eu acho que é uma coisa muito diferente. Se calhar é pretencioso. Eu sinto que é uma coisa que é bastante diferente. E portanto, se isso também ajudar malta, companheiros a criar também à sua maneira, diferentes. Às vezes só o facto de sabermos que é possível fazer de maneira diferente leva-nos a fazer à nossa própria maneira. Se isso ajudar mais alguém a ir mais fundo, fantástico”, conclui Miguel Jesus.
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